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domingo, 8 de junho de 2014

J.R.R. Tolkien, o homem que viu o amanhã

O Senhor dos Anéis é de caras o livro de ficção mais adorado do mundo de língua inglesa, e também o mais influente, tendo dado origem ao massivo movimento imaginativo ao qual chamamos género de “fantasia” na ficção e nos jogos. Isto é só o início. As obras de Shakespeare, tal como as de Tolkien, foram consideradas lixo comercial pelos seus contemporâneos. Actualmente alguns dão a Shakespeare o crédito de ter inventado a consciência da civilização ocidental moderna. No mínimo das hipóteses o mesmo previu o que aí vinha. Sugiro que Tolkien criou/interpretou/antecipou a consciência humana do mundo que se aproxima, o mundo real que surgirá após a há muito aguardada implosão da civilização industrial. Temos pensado n’O Senhor dos Anéis como um “escape” do mundo “real” para um passado mítico só porque a mitologia dominante do nosso tempo, que na realidade não passa de uma fantasia escapista, nos diz que assim é. Sugiro que não só faz sentido falar dum futuro Tolkienesco, como é para lá que nos dirigimos.

Agora a primeira dúvida em que todos devem estar a pensar: o que queres dizer? Teremos elfos, hobbits e orcs? Isso é muito improvável mas não é impossível – se o actual sistema se mantiver durante mais algum tempo pode criar geneticamente novas criaturas de aspecto humano com diferentes tamanhos, formas e talentos, e cada variedade terá tendência em unir-se e em tornar-se num povo autónomo com a sua própria cultura. Mas mesmo sem essa diversidade biológica, se nos livramos dos poderes que nos controlam e nos tornarmos iguais, iremos desenvolver uma variedade espectacular de culturas e de sociedades – ainda mais diversa do que a anterior à civilização, devido à influência das tecnologias que sobreviverem. Com liberdade suficiente, algures existirão mesmo pessoas que vivam em casas nas árvores e que cacem com arcos, e algures existirão também pessoas que vivam em casas escavadas nas colinas e que pratiquem uma agricultura sustentável. E num futuro menos que ideal, os “orcs” e os seus líderes irão existir como uma sobrevivência ou uma reemergência do actual sistema, tentado assassinar ou escravizar todos os outros seres vivos e concentrar o poder hierárquico.

Iremos combater-nos com espadas? Novamente, é possível. Mas seria mais proveitoso recordar (nesse mundo e neste) que combates mortíferos só têm graça em histórias e em jogos. No mundo real é algo horrendo e horrível para todas as partes envolvidas.

Existirá magia? Claro! O único sistema de crenças que não aceita nada que se assemelhe com magia é o paradigma mecanista Cartesiano, no qual tudo não passa de um objecto inanimado e o grito de um animal torturado não difere do de um sinete a tocar numa máquina. Esta metafísica é insana e activamente estúpida vista por todas as perspectivas excepto a sua. Mas uma vez que a maior parte de nós ainda se encontra inserido nesta perspectiva, é difícil imaginar-mos como será a “magia”. Tudo o que tenho a dizer é que, em cada sistema de crenças que não seja simbiótico de uma sociedade de morte e pesadelo, a matéria é uma característica da mente e não o contrário.

E, nesta Utopia mágica, as nações dominantes serão constituídas por monarquias hereditárias? A sexualidade pública será inexistente? Determinadas raças serão biologicamente boas ou más? Iremos procurar a felicidade identificando o que é mau e destruindo-o? Aqui podemos notar que J.R.R. Tolkien, um dos maiores génios que alguma vez viveu, pode não ter compreendido algumas coisas tão bem como nós, e que podemos retirar da sua escrita aquilo de que gostamos e deixar de parte o que nos desagrada.

Podemos? O conceito de que podemos retirar as partes de que gostamos daqui e dali e forçá-las a unir-se num todo perfeito, é o mesmo tipo de pensamento que nos trouxe a esta confusão. Não podemos acomodar-nos e alterar o mundo – alteramo-lo vivendo nele, e não podemos escolher exactamente as características que nos agradam, porque essas características têm, elas próprias, gostos e desgostos, motivos e alianças e desentendimentos.

Além disso, todas as pessoas que adoram O Senhor dos Anéis, desde os anarquistas pagãos aos fundamentalistas cristãos passando pelos fascistas italianos, projectam valores diferentes sobre o livro e iriam tentar criar futuros Tolkiniescos bastante diferentes. Mesmo assim, essas visões têm algo em comum. O Senhor dos Anéis poderá não descrever, literalmente, o futuro, mas aponta para este de modo emocional – aponta exactamente para este, através da modernidade para o mundo além dela como a flecha de Bard através do coração de Smaug n’O Hobbit. E como os cinco exércitos que se digladiam pelo tesouro de Smaug, todos aqueles que sabem que a besta morreu irão combater por uma parte do que esta arrecadou.

Mas, como Tolkien sabia, a maior parte do mundo não é hostil ou imbecil, e não é por acaso que os futuros Tolkoniescos menos agradáveis, e os não funcionais, terão tendência a ser o mesmo. Por exemplo, se pegarmos n’O Senhor dos Anéis de que os fascistas gostam e o colocar-mos no mundo real, então os elfos, os anões e os humanos “bons” iriam exterminar os orcs e os duendes “maus”, e depois iriam manter esse mesmo hábito uns contra os outros, até que sobrasse uma só raça humanóide, e depois essa raça iria encobrir as provas de que outras raças alguma vez tivessem existido e inventar novas “raças” no seu próprio seio para alimentar o seu hábito assassino.

Visto deste ângulo, O Senhor dos Anéis é, acima de tudo, uma visão do passado! (E é impressivamente semelhante a muita da História e da arqueologia não dominantes.) Outra interpretação reaccionária parva é a que glorifica as armas medievais e a tecnologia. Seriamos estúpidos em imaginar que um mundo ao estilo medieval seria sustentável, uma vez que o mundo medieval real foi um estágio de passagem na rápida História da civilização.

Mas O Senhor dos Anéis é grande o suficiente para ser um ingénuo anseio pelo passado e uma inspirada visão do futuro – e uma inteligente apreciação do passado. A ideia de que a História se limita a “avançar” e que só melhora é outro conceito da actual era psicopata. O Senhor dos Anéis olha não só para o mundo medieval europeu mas também para o mundo pré-civilizado, e não é de todo estúpido acreditar que um mundo de estilo “primitivo” não seria sustentável, uma vez que na realidade foi sustentável durante centenas de milhares de anos, e foi suprimido apenas pela influência duma poderosa força externa.

Não creio que voltemos “para trás” para vivermos como índios, mas em frente, num círculo perfeito, num reinventado mundo não-civilizado, um mundo cru, selvagem e vivo, não porque seja inocente mas porque é experiente. E O Senhor dos Anéis descreve-o em modos subtis mas específicos:

Todo o universo e tudo o que este contém estão repletos de inteligência e de significado. Outras criaturas são tão espertas como os humanos e falariam connosco se conhecêssemos a sua língua – até mesmo as árvores! Quando as culturas não são conquistadas ou controladas, tornam-se extremamente diversas e criativas. As sociedades que se expandem e exploram os recursos arruinam tudo, mas caiem sempre. As pessoas viverão entre as ruínas e os artefactos de civilizações já esquecidas, mas não tentarão trilhar a via destas. As culturas irão adaptar-se às terras nas quais vivem, em vez de obrigarem as terras a adaptarem-se a elas. Apesar das pessoas pertencerem a uma região, mesmo assim podem aventurar-se e viajar. O mundo é feito de histórias, não de factos; não é conhecido ou conhecível, mas flui numa surpresa e num mistério sem fim.

Ran Prieur

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